SP-São Petersburgo, uma viagem que levou 50 anos (por Marcie)
Senhoras e senhores, preparem-se: vem aí mais uma viagem sentimental da Marcie. Depois de ter passado o carnaval de 2010 em Varsóvia, este ano a Marcie foi a outra terra ligada a seus pais: São Petersburgo, na Rússia. Os trips ajudaram com dicas, e agora ela retribui com o seu relato.
Texto e fotos: Marcie Grynblat Pellicano
Como minha idade já foi divulgada em cadeia nacional de televisão por ninguém menos do que meu próprio marido, posso revelar – sem constrangimento – que ouço falar de São Petersburgo há mais de 50 anos. Meus pais (principalmente minha mãe, de ascendência russa) diziam maravilhas desse lugar que, pra mim, acabou adquirindo status de conto de fadas. Palácios, pontes, monumentos, imperadores, imperatrizes, tesouros, guerras, tudo isso debaixo de muita neve e com o termômetro atingindo temperaturas muito além da imaginação de uma pobre menina vivendo no Patropi. Cresci assim, em meio a muito pelmeni, vodka, e longas conversas sobre o dia em que meus pais finalmente visitariam a tão sonhada cidade.
Não visitaram.
Por mais de 50 anos, eu também não. Na verdade, em 1994 quase fui. Estive em Moscou e considerei seriamente a possibiidade de tomar um trem — mas o medo foi maior do que a vontade. A abertura política ainda era uma coisa recente no país e, se dava medo andar 100 metros nas ruas, imaginem viajar mais de 600 quilômetros de trem…
Corta para o Carnaval de 2011. Aproveitando de uma permanência na Europa, compramos um belo pacote e lá vou eu! Três horas de vôo de Paris. Apenas três horas! Não me canso de constatar e alardear as vantagens de que desfrutam os felizardos que vivem no velho continente. Principalmente em Paris, que é o ponto de partida perfeito pra qualquer destinação européia.
Chego a São Petersburgo às 3 da tarde com o mercúrio na casa de -10º. Quer dizer, fresquinho. E no carro já tenho as mesmas primeiras impressões que tive em Moscou em 94: o cinza, a arquitetura pesada, as roupas escuras, os monumentos mastodônticos, tudo contribuindo pra uma espécie de tristeza — que talvez só seja tristeza para nós acostumados ao sol, às cores, mesas nas calçadas, essas coisas…
Quase duas horas depois… Exato, duas horas de carro até o hotel! É que chegamos na sexta-feira anterior a um feriado na terça. A primeira ponte da primavera. Sim, primavera com menos 10 graus (na Rússia, não me perguntem por quê, a primavera começa dia 1º de março). Por que feriado na terça? Porque é o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora. Viram o detalhe? Não só sapecaram um adjetivo como transformaram em feriado nacional.
Bem, no hotel foi o tempo de deixar as malas (ah, sim, e de recusar os dois primeiros quartos) pra sair e fazer o primeiro reconhecimento de área. Com neve até o joelho, é claro. E aqui a segunda surpresa: a cidade intransitável não só nas ruas, mas também nas calçadas. Que contraste com Varsóvia, onde as calçadas recebiam cuidado permanente da prefeitura!
Mas nada nos deteve e, em pouco tempo (mesmo porque o hotel era praticamente em frente), estou diante do tão sonhado Hermitage – já fechado, em função do horário. O tamanho é chocante, mas o estilo rococó do prédio principal, ainda mais em verde e amarelo!, confesso que decepcionou um pouco. Mas o importante é o que está lá dentro, disse eu, enquanto aproveitava pra visitar a impressionante Coluna de Alexandre (um monolito colocado de pé por 3.000 homens, sem alicerce ou qualquer outra ligação com o terreno) e a Praça do Palácio, do tamanho de alguns campos de futebol…
Aí chegou sabadão! E eu de bilhete na mão (até rimou), comprado previamente na internet. Um bilhete pra dois dias, apesar de permitir uma única entrada por dia. Recomendo muitíssimo! Mesmo com a neve e o frio que se abatiam sobre a cidade, a fila dava voltas no pátio. E eu, de posse de minha reserva, furei a “bicha” (como se diz em Portugal) e, em poucos minutos, estava dentro, – vou repetir, gente! – dentro do Hermitage.
Ali, tudo muito organizado. Rapidamente, a reserva foi trocada por bilhetes. Os casacos foram guardados (grátis). E eu estava pronta para adentrar o assim chamado espaço expositivo, do qual só me separavam uma catraca e o indefectível detetor de metais. Uma vez dentro, você já dá de cara com a Escadaria Jordan. Foi construída, destruída, queimada, modificada, etc, mas ainda é imponente. Talvez o ”canto” mais imponente de todo o Hermitage. Só que, contrastando com essa exuberância toda, você começa a sentir falta de algo fundamental em qualquer museu: informação.
Essa é primeira bad surprise. Os poucos textos e indicações são todos em russo — e mesmo em russo eles são poucos. E o museu, então, é um labirinto. Claro, são cinco palácios interligados e três milhões de peças para expor. Não deve ser fácil. Mas que poderiam fazer melhor, poderiam. Compramos um guia da série Rough Guide (aliás, bastante bom) e fomos em frente lendo e dando encontrões — felizmente em nenhum jarro de alguns milhares de dólares.
Outro ponto baixo (já vou falar dos altos) é um certo descuido com o background dessa arte toda: as paredes. Numa sala, elas são cinza. Noutra, são marrom. Noutra ainda, são azuis. Nenhuma cor enfim que nos convide a abstrair essa superfície e focar no que interessa: as obras de arte. A propósito disso, um fato interessante: num dos salões principais, o Museu do Prado fazia uma exposição temporária. Bom, não dava pra comparar o cuidado com que foram expostos os El Grecos e Velásquez (já é plural, não é?) da vida. Sala em penumbra, painéis imaculadamente brancos, iluminação inteligente e abundância de informação. Já no acervo permanente, paredes de várias cores, iluminação equivocada e extrema economia de textos.
Bom, mas tirando isso, meu Deus! Vou repetir caso alguém não tenha ouvido: meu Deus! Foram dois dias de cair o queixo. E de fazer bolhas nos pés. E também (lá venho eu de novo) de passar fome: os dois “cafés” que servem o Hermitage são ridiculamente desprovidos. Mas tudo bem. Como já disse acima, nada conseguiria me abater. Andei quilômetros cobrindo séculos e continentes, mas me demorei mais e muito no terceiro andar, Pavilhão do Impressionismo. São algumas centenas de telas dos pintores que mais admiro (vários deles, é claro, indo além das fronteiras dessa escola): Bonnard, Seurat, Signac, Denis, Derain, Utrillo, Pissarro, Sisley, Rosseau e por aí afora. Além dos monstros Monet, Manet, Cézanne, Van Gogh. Ah, sim: Matisse. E Picasso. E Renoir. Enfim, um desbunde. Foi nesse pedaço que passei boa parte de meus dois dias de glória.
Lá e num cantinho escondido do segundo andar, que não consta do catálogo e onde é proibido fotografar ou filmar. Do que se trata? De mais obras francesas (na maioria, impressionistas) surrupiadas da Alemanha ao final da Segunda Guerra. Como a pendência jurídica se arrasta há décadas, eles houveram por bem (uau!) separar as obras do acervo permanente. Não deixem de ver… Se ainda estiverem lá.
Que mais? Muito mais. Dos artesãos da Sibéria ao Da Vinci. Das múmias do Egito à arte japonesa. O que você imaginar, eu vi. E vi também, com especial atenção, os pintores flamengos. Muito, muito bom.
E por falar em bom, é bom eu sair do Hermitage e falar um pouco da cidade – senão não vai haver espaço que chegue. Então, São Petersburgo no inverno. Neve até o joelho. Locomoção dificultada. Essas coisas. Mas devo dizer que andei. Highlights? A Igreja do Sangue Derramado. A Fortaleza de São Pedro e São Paulo. A Catedral de Santo Isaac. O Museu de Arte Russa. A cópia (de longínqua semelhança) da Basílica de São Pedro: a igreja de Nossa Senhora de Kazan. Os canais, todos geladíssimos!!! frustrando minha vontade de um passeio de barco. Enfim, há uma pá de coisas grandiosas pra serem vistas. Quase esquecia do Teatro Mariinsky, do Ballet Kirov! Além dos arredores: principalmente Peterhof e Tsarskoe Selo (mas melhor fazer isso no verão).
E há coisas menores, incríveis: o Museu do Dostoiévski, o Museu do Pushkin, o Museu do Nabokov, o Museu do Rimsky Kosakov, e a lista continua. É muita cultura pra cinco dias, mas bravamente tentei bater ponto onde deu. Por falar em bater ponto, lembrei do relógio parado que vimos em vários lugares. Uma tradição: interromper o relógio quando morre algum personagem importante. Mas se eu for entrar em tradições e superstições, aí sim que não acaba mais: flores têm que ser em número ímpar; quem esquece alguma coisa não pode voltar pra trás; não se dá a mão em cruzamento, etc, etc.
Bom, vou terminar contando duas coisas: uma boa e uma ruim. A ruim: espatifei-me na neve. A boa: fartei-me de pelmeni na antiga fábrica das máquinas de costura Singer, hoje transformada num Café muito competente e com uma imensa livraria no fundo. Infelizmente não leio russo, mas com o maravilhoso pelmeni não tive nenhuma dificuldade…
Como disse acima que já terminei, essa nota aqui vai como adendo: tive a sorte de chegar a São Petersburgo depois de ter feito um “curso intensivo” de Hermitage. É que, até 29 de maio, a Pinacoteca de Paris está exibindo “Romanov, os Czares Colecionadores”. Em poucas salas, com quadros fantásticos e textos reveladores, eles contam a história do Hermitage. De Pedro, o Grande, passando por Catarina, também a Grande e fundadora do museu, até Nicolau II, o pai da Ingrid Bergman, quer dizer, da infeliz Anastásia (vivida pela atriz no filme do mesmo nome). Quem for a São Petersburgo via Paris, tem que ir à Pinacoteca. Ah, sim: com ingresso comprado na internet…
Spasiba, Marcie!
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108 comentários
As boas viagens são como os bons vinhos, quanto mais tempo maturando, melhor a degustação.
Emocionante o seu relato, Marcie.
Que belo relato! Como a Juliana comentou aí em cima, emocionante.
A viagem foi linda, assim como as fotos. Um dia ainda vou para a Rússia, mas só se for acompanhada de um ótimo casaco de neve 😉
Não preciso comentar que adorei a parte que você citou o Ballet Kirov, né? 😀 😀
Que lindo Marcie! Emocionante!
Marcie, você é mesmo corajosa! Encarar São Petersburgo no inverno??? Mas, apesar da neve nos joelhos, você gosta, né? 😉
Ai, que delícia!
Espero que a queda na neve não tenha deixado resquícios… E que os dias de glória vividos ali sejam lembrados para sempre!
Muito bom Marcie, mas com certeza eu não repetiria sua bravura de ir no inverno.
E cair na neve na Rússia não dá sorte? 😉
Delicia Marcie !
E eu q amo um ravioli , certamente vou adorar o pelmeni 🙂
Marcie
Parabens pelo realto. Para quem for recomendo conhecer o belissimo metro da Cidade.
Adorei, Marcie.
Por aqui, há muita gente que faz Moscovo-S.Petersburgo (em pacote, claro) mas no Verão, que a malta está habituada a bichas com calor. (Espero que quem leia os cometários, leia também o texto…eh, eh,eh).
Beijinho para si e para o Ciro.