Parintins, 17 anos depois: de volta ao futuro
Se você já viu alguma transmissão do Festival de Parintins na TV, faça o seguinte. Acesse o seu cérebro. Selecione essas imagens. Aperte DEL. Então vá à lixeira, e esvazie.
Apague permanentemente esses registros dos seus arquivos mentais. Porque o que a TV, a revista Caras e este post mostram não é o Festival de Parintins.
Eu já sabia disso, por ter vindo ao festival no longínquo 1999. Mas este ano pude comprovar in loco. O Bumbódromo, no centro da cidade de Parintins, enricou e agora tem um telão que passa exatamente a transmissão da TV.
Dá para comparar ao vivo. Tem nada a ver uma coisa com a outra. A TV retalha a apresentação numa seqüência interminável de closes desconexos que fazem perder a noção do todo.
A transmissão tenta passar a idéia de movimento, como se apresentação fosse um desfile — coisa que não é. O excesso de planos fechados salienta os espaços vazios da arena, quando da arquibancada o palco parece inteiramente preenchido. Alguém tem que dar Ritalina pro switcher. Ou chamar um diretor que tenha experiência em transmissão de ópera.
“Ópera da floresta” é o clichê mais gasto sobre o Festival de Parintins. Mas, como acontece com os melhores clichês, é difícil de superar. No meio da apresentação do Garantido esse ano eu pensei em “Broadway naïf”. Se gostar, é seu.
Back to Parintins
17 anos depois, Parintins me pareceu uma outra cidade. Está visivelmente mais próspera do que em 1999. Todas as ruas estão asfaltadas, e 100% das pessoas que andam de moto usam capacete.
Já existe uma pequena rede de pousadas com conforto básico (em 1999 precisei ficar num puxadinho numa casa de família).
A maioria dos visitantes continua chegando de barco, mas achei que havia bem menos barcos do que em 1999; durante os dias de festival, é montada uma verdadeira ponte aérea entre Manaus e Parintins, que torna viáveis até bate-voltas. A distância entre as duas cidades é de 370 km.
Não me lembro da orla ser tão animada assim da primeira vez que vim (mas talvez não tenha sabido procurar direito; minha casa era mal localizada).
A novidade de que mais gostei foram os triciclos, que na época do festival cobram 10 reais por qualquer corrida (e não recusam passageiros gordinhos…)
2016 x 1999
Quando vim pela primeira vez, registrei o meu espanto (e o meu deslumbramento) num texto que chamei A Coca-Cola azul e outros baratos de Parintins — mas que o editor da Vip Exame mudou, wtf, para “Valha-me Tupã” (pelo menos no texto não mexeu).
Eu tinha ido para torcer pelo Garantido, o boi vermelho, que tem a mesma cor do meu time, o Internacional de Porto Alegre. Estranhamente, fui conquistado pelo Caprichoso, o boi azul, que tem a cor do Grêmio, justamente o rival do Inter.
Naquela vez, achei o Garantido emocionante, mas tosco. Seus maiores trunfos eram as músicas, cantadas lindamente por David Assayag, um cantorzaço, e a vibração da galera (que é a denominação oficial das torcidas em Parintins).
Só que o Caprichoso estava anos-luz à frente em concepção de espetáculo e direção de arte. Eu tinha vindo para ver um festivalzinho folclórico e o Caprichoso tinha me mostrado um show mais bonito do que os que Joãosinho Trinta aprontava na Sapucaí.
Desta vez, claro, já vim decidido a torcer pelo Caprichoso. E o que aconteceu? Spoiler: gostei mais do Garantido…
Na verdade, o que aconteceu foi que o caminho da superprodução trilhado pelo Caprichoso nos anos 90 acabou influenciando todo o festival — incluindo aí o boi contrário. O primeiro impacto já acontece na arena: o Bumbódromo tem som e luz de mega-show de primeiríssima qualidade.
2016 foi ano de vacas, perdão, de bois magros, porque o estado do Amazonas cortou sua verba, e o festival só saiu com apoio da prefeitura e venda de patrocínio. Não posso avaliar o quanto o espetáculo perdeu com isso. Mas se não tivessem me contado, eu não saberia.
Aos meus olhos (sempre lembrando que isso aqui é um relato pessoal, estou apenas repassando minhas impressões, sem pretensão de ser o dono da verdade), desapareceu o gap entre Caprichoso e Garantido que eu tinha visto em 1999.
Digo mais: para espanto de amazonenses com quem falei depois do festival, desta vez o Garantido me pareceu mais rico do que o Caprichoso.
Na verdade, toda a minha percepção de 1999 se inverteu. Achei o Garantido mais grandioso, com melhor senso de espetáculo, preenchendo todos os espaços e com belas coreografias.
Os rituais e lendas amazônicas (dois itens que mudam todas as noites, e que são encenações de pequenas histórias, com grandes cenários e figurantes com movimentos ensaiados) são tão produzidos quanto os do Garantido. Uma dessas lendas da floresta, a guerra entre os macacos pretos e macacos vermelhos, foi para mim o ponto alto de todo o festival.
Ainda na minha particular e não-solicitada opinião, o Caprichoso ganhou do Garantido nos dois itens em que o Garantido parecia imbatível: suas músicas estão mais contagiantes (o fato de ter roubado David Assayag do contrário também ajuda) e a galera foi muito melhor utilizada, com mais adereços e coreografias, e estava animadíssima.
(Filosofia rápida de botequim)
A galera do Garantido tem aquela neurose corintiana da superação: a vitória vem pela superação dos obstáculos, a derrota deve ser superada pelo amor à camisa. Já a galera do Caprichoso tem uma vibe mais diversão: ganhar é bom, mas o melhor é a curtição.
(Fim da filosofia rápida de botequim)
Onde o Caprichoso desandou, a meu ver, foi na ocupação do palco. A impressão que passava é que tinha muito menos integrantes do que o Garantido.
Os números coreografados, acredito que realizados pela elite de bailarinos do boi, estavam excelentes; as coreografias dos figurantes comuns, porém, estavam mal-ensaiadas (talvez porque sejam mais complicadas que o dois-pra-lá dois-pra-cá do Garantido), e o tempo todo se via figurante olhando para o lado para ver o que fazer.
O ponto mais baixo foi o amo do boi, um personagem (“item”, em boi-bumbês) que tem como função fazer repentes ao longo da noite, exaltando o seu boi e provocando o contrário. Pois bem: o amo do Caprichoso não conseguia fazer um (repito: um) verso caber na métrica. Era uma agonia. Se em vez de festival isso fosse uma prova do Enem, o Caprichoso estaria desclassificado por tirar zero na redação.
O amo do Garantido, por sua vez, é um repentista eficiente, que acabou usando os versos quebrados do amo contrário como mote maior de suas provocações. (Mas olha só, amo do Garantido: piada com orientação sexual em 2016 não dá mais não, viu? Você é muito talentoso, não precisa ser grosseiro.)
Entre os levantadores de toada, a voz de David Assayag continua imbatível (a propósito, o contrato dele só vai até este ano; não se sabe se será renovado).
Mas o levandor do Garantido, Sebastião Júnior, também canta muito bem, e tem a seu favor uma bela presença de palco — com jeito de moleque e supercarismático, se porta como um saltimbanco e é um prazer de assistir.
Entre os destaques (‘itens’) femininos, é difícil para um forasteiro distinguir as diferenças de função entre a cunhã-poranga, a rainha do folclore e a porta-estandarte de cada boi. Mas o que deu pra ver claramente é que as mulheres do Caprichoso fariam mais sucesso do que as do Garantido num concurso Miss Venezuela.
Entre todos os protagonistas, o que mais me impressionou foi André Nascimento, o pajé do Garantido — seu estilo parece misturar Ney Matogrosso da época dos Secos & Molhados com astros da lucha libre mexicana. Quando ele está na arena, vira na hora o ponto focal.
Quem ganhou?
Garantido
Caprichoso
Jurados
Todos os anos, o Festival Folclórico de Parintins é julgado por uma turma de intelectuais virgens em boi-bumbá importados de algum estado brasileiro. Este ano o júri veio da Paraí
É um universo muito curioso, esse dos bumbás. A imprensa amazonense cobre o festival com uma imparcialidade irritante, sem análise técnica, sem nenhuma possibilidade de algo como a briga entre Paulo Barros e Milton Cunha. Só se publicam platitudes e declarações oficiais.
E daí, todos os anos, em vez de submeter seu trabalho à apreciação de especialistas, os bumbás chamam neófitos tão despreparados para se manifestar sobre o assunto quanto eu.
Como algo pode se desenvolver nesse ambiente? Eppur o boi-bumbá si muove. Os bois evoluem — como pude constatar. Como pode? Deve haver algum lugar na deep web onde os aspectos técnicos são discutidos por quem entende. Será que tem curso de bumbá? Eu queria fazer.
Ah, sim: o vencedor. Este ano deu Garantido, por uma diferença mínima de 3 décimos. Dos 21 itens em julgamento, houve empate em 13. O Caprichoso foi campeão nos itens Toada e Alegoria. O Garantido levou a taça em Porta-Estandarte, Rainha do Folclore, Sinhazinha da Fazenda, Ritual Indígena, Lenda Amazônica e Figura Típica Regional.
E o Amo do Boi, aquele que desclassificaria o Caprichoso no Enem? Deu empate: os dois ganharam nota máxima de todos os jurados.
Vai encarar?
Se você está preparado para gastar em Parintins o equivalente a um carnaval de Salvador, pode assistir ao festival com todo conforto comprando um pacote com vôos fretados e hospedagem no ‘resort’ (põe aspas nisso) e nas pousadas da ilha.
Finalmente, o esquema roots é se encaixar num barco que saia de Manaus para o festival e dormir em rede. Também dá para assistir ao festival de graça: as duas arquibancadas da galera são gratuitas. Para conseguir entrar, você precisa estar na fila à tarde.
25 comentários
Sou apaixonada pelo festival de Parintins, à muitos anos, assisto pela tv, e a minha vontade e curiosidade de assistir ao vivo cada ano aumenta mais. Hoje tenho 71 anos de idade, e só agora é que despertei, e me pergunto…por que não ? Se Deus quiser ano que vem vou… nossa já estou ansiosa, vou começar já a tomar providências para viabilizar, se tiverem alguma dica me ajudem…gosto dos dois, vou tentar me decidir. A estadia aí é fácil? É muito caro? Quero ir com alguns dos meus netos, os que estiverem disponíveis, ao todo são 13. Dá pra planejar uma excursão. Parabéns a todos por manterem tão linda tradição. Atualmente são poucos os motivos de orgulho em ser brasileira, e vocês com certeza é um deles.um grande e afetuoso abraço.
A caminho de Parintins pela primeira vez, com muitas expectativas. Obrigado pela análise. Abraço
Ja estava planejando ir em 2017 e fiquei ainda mais animada apos ler seu post. Vale a pena emendar o festival com uma visita a Alter do Chao? Ja li que nao é a melhor época do ano.
Olá, Paula! O Ricardo Freire foi para lá este ano depois do festival e, devido à pouca chuva do primeiro semestre, a ilha do Amor já tinha emergido um pouco.
Muito bom sua explanação…..detalhes lhe fugiu da atenção..Cunhã poranga do Garantido quase sendo esmagada por batucada….precisou ser empurrada(Provavelmente para alertar-se)…O relógio misteriosamente quando passou o tempo de duração…foi desligado ou só conta aquelas horas determinadas…o portão fechou-se com membros do Garantido na arena e outros espremidos forçando-o…….não havendo desconto de pontos…..Mais a festa foi linda excelente a Lenda dos Macacos pretos e vermelhos…..Brodway pura…sai de fortaleza e consegui realizar meu sonho…….
Parabéns, você mais uma vez. está sendo brilhante e preciso em seu texto e seus comentários.Além do que, ao contrário da Fafá de Belém, você é pé quente. Garantido campeão em 1999 e em 2016.Já está convidado a retornar no próximo ano.
Sua análise fez muito sucesso por aqui. Nós realmente precisamos de análises de quem é formador de opinião ou que tenha uma visão crítica. Assim os bois podem aperfeiçoar o espetáculo. Fiquei feliz por saber que meu Boi Caprichoso protagonizou grandes espetáculos e ditou como fazer a ópera da floresta. Pena que em decorrência de falhas administrativas meu amado boi tenha “desandado” como você diz. Mas vamos recuperar.. Quanto ao Garantido, este ano “roubou” o que tínhamos de melhor, nosso diretor de arena Edwan Oliveira.. Mas essa é outra história..
Parabéns pela análise.
Nós parintinenses costumamos dizer que quem vai pra galera não vai com a finalidade de assistir, e sim de fazer parte do festival.
Outra opção é chegar de avião por Santarém, no Pará, e de lá partir de barco ou lancha para Parintins. Por Santarém, o turista ainda tem a opção de conhecer a bela praia de Alter do Chão. No Bumbodromo, o bom é ficar nas arqubancadas especiais/geral porque você assiste de frente o espetáculo. Nas cadeiras laterais você perde a dimensão da apresentação. Embora estas sejam mais baratas, não vale a pena. No geral, a apresentação dos bois é linda. E posso dizer que nao cansa assistir ao Festival por três noite consecutivas durante 6h. É tão dinâmico e surpreendente que sempre fica o desejo de quero mais.
Parabéns pela analise! Sou de Manaus e fui ao festival esse ano na galera do Garantido! Só indo ao festival in loco pra saber o qnt essa festa encanta e apaixona a todos. Quem vai, sempre quer voltar!!
Dica àqueles que pretendem ir ao Festival: app “Parintins” para Android e iOS. Recomendo!