Roteiro de viagem: a importância da decupagem
Nas duas décadas em que trabalhei em publicidade, tive a chance de criar centenas de comerciais que foram ao ar. Na rotina de produção de um comercial, o momento crucial era o da decupagem, quando o diretor mostrava cena por cena como o roteiro seria realizado. Nesse momento, muito do que a gente tinha criado (e aprovado com o anunciante!) poderia se revelar impossível de produzir. É quando a gente ouvia coisas como: “O texto tá estourando o tempo!” Ou: “Este plano demora o dobro do que vocês estão imaginando!”. Um dos diretores com quem mais trabalhei, o Andrés Bukowinski (descobridor do Garoto Bombril), dizia que um comercial de 30 segundos, para ser fluido, não poderia ter mais do que 17 segundos de locução ou diálogo.
Com roteiros de viagem acontece a mesma coisa. O papel aceita tudo, e a gente tem a tendência de entuchar muito mais coisas (passeios, escalas, atrações, compromissos) do que cabe de maneira aproveitável no tempo que temos disponível. Com os anos de estrada a gente vai aprendendo a ser mais realista, mas até hoje eu me pego planejando mais movimentos do que dá para executar. (Eu pelo menos tenho a desculpa de que estou tentando apurar o máximo de conteúdo para o site; mas no seu caso são férias, que não deveriam ser desperdiçadas com perrengues.)
Por isso é útil trazer para o seu roteiro de viagem o método da decupagem. Imagine seu dia como um filme (é um loooongo documentário!) e passe cena por cena — sobretudo aquelas chatas, que a gente costuma omitir no planejamento, mas que são indispensáveis para a produção do roteiro.
Por exemplo. Esses dias um leitor, entusiasmado com o roteiro de carro pelo belíssimo Val d’Orcia, na Toscana (um passeio que o post recomenda fazer a partir de Siena), perguntou se não era possível fazer a partir de Roma, alugando um carro para o dia. Aparentemente, dá: Montepulciano, do ladinho do vale, está a 180 km de Roma. O Google Maps calcula em 2 horas de viagem com trânsito bom para sair de Roma.
Mas é preciso fazer a decupagem das cenas que o Google Maps não leva em consideração nesse cálculo. A saber: nesse dia você precisa (1) acordar, (2) tomar café, (3) tomar banho e ir ao banheiro, (4) sair do hotel e ir até a locadora, (5) pegar o carro. Dificilmente você estará com o carro na mão antes das 9h. (Quando fui pegar um carro na Gare du Nord, em Paris, para ir ao Vale do Loire, perdi 45 minutos só no edifício-garagem procurando um carro da Europcar que tinha sido colocado fora da vaga. Pensei que sairia de Paris às 8h30, mas só peguei o anel viário às 10h30.) O mais realista é imaginar que você só chegaria ao primeiro destino do roteiro lá pelas 11h30. É muito trampo para pouco tempo líquido aproveitando. E ao fim do passeio, os 180 km de volta vão ser as duas horas mais intermináveis da viagem, porque você estará cansado, sonhando com um banho. (Já quando você faz um bate-volta de trem, pode usar o tempo de volta para descansar e recuperar as forças, sem a tensão de estar na estrada e não errar as saídas.)
Claro que também dá para alugar o carro na véspera. Mas isso ocasiona outros perrengues: sacrificar duas horas do seu dia de turistagem para ir à locadora, pegar o carro, enfrentar o trânsito de Roma e achar um estacionamento. No dia seguinte, isso significará também um horário-limite para voltar do passeio sem pagar horas extras, que costumam ser caras.
Enfim, uma idéia que parece ser ótima (oba, vou alugar um carro pra passar o dia zanzando por um lugar a duas horas daqui) acaba se revelando um programa extra-puxado.
Vamos decupar outras idéias que ocorrem a inúmeros viajantes:
Pegar trem noturno
A priori, a idéia é perfeita. Você economiza uma noite de hotel e chega cedo na cidade seguinte para aproveitar mais o dia. A decupagem do roteiro, porém, mostra seus problemas.
Você vai desocupar o quarto do hotel ao meio-dia (vai deixar as malas no hotel ou num guarda-volumes da estação de trem). Precisa escolher uma roupa que sirva para passar o resto do dia na cidade, dormir no trem e passar a manhã na cidade seguinte.
Daí, depois de cumprir seu programa de visitas da tarde e jantar, você chega a estação e precisa embarcar sem banho. Na hora de dormir você percebe que não é tão fácil assim: o trem chacoalha, faz algum barulho, e você não consegue parar de pensar na sua mala, que ficou acomodada no seu compartimento na entrada do vagão, à vista de quem passar.
Quando chega supercedo à próxima cidade, tudo o que você quer é subir ao quarto e tomar um banho. Mas nada garante que o seu quarto esteja disponível. Na pior das hipóteses, você só poderá subir às duas da tarde. Vai ter que ficar até lá com a roupa do dia anterior (será que o tempo estará o mesmo?) ou abrir a mala e trocar num banheiro, sem ter tomado banho. Ao sair para a rua, você vai perceber que a cidade ainda não acordou direito, e que a maioria dos lugares que você quer visitar só abre às 10h. Às duas da tarde, quando em condições normais você estaria cheio de energia turistando, você estará no hotel, desperdiçando um horário nobre para tomar banho (e provavelmente não resistindo a uma sonequinha).
Continua achando que é uma boa?
Dossiê trem na Europa:
Perguntas e respostas sobre passes, bilhetes avulsos, reserva de assentos e muito mais
Fazer conexão entre avião e trem
Chegar de avião na Europa e seguir de trem para um destino próximo parece uma idéia redondíssima — afinal, o trem é o meio de locomoção europeu por excelência.
Decupando, porém, a gente acha os senões. O primeiro deles é que os trens rápidos têm lugar marcado. Você precisa necessariamente ter uma reserva para um horário específico. E daí vem a questão: que horário marcar?
Se você marca o term com um intervalo razoável (digamos, 2h30 a 3h depois do desembarque), o filme do seu deslocamento vai ser estressante. Dias antes de voar você já vai começar a se preocupar com o atraso do vôo. Mesmo que o vôo não atrase, a chegada vai ser tensa. Essa fila da imigração que não anda! Meu Deus, minha bagagem não chega. Qualquer errinho para pegar o transporte entre o aeroporto e a cidade pode significar perder o trem.
E se você marca o trem com um intervalo seguro (digamos, 6h depois do desembarque), o filme do seu deslocamento pode ser tedioso. Se tudo der certo e não houver nenhum contratempo, você vai ganhar um belo chá de banco na estação ferroviária. Vindo de uma longa viagem de avião, a experiência pode ser torturante.
O que fazer, então? Você tem duas alternativas. Se o lugar para onde você ia de trem tiver aeroporto, você deve comprar a passagem aérea até esse destino. Esse costuma ser o caso de Veneza (compre passagem a Veneza, em vez de comprar até Milão e já ir para estação ferroviária), Barcelona (pra que chegar por Madri se você não vai ficar na cidade?) e Berlim (não compre só até Frankfurt se o que você deseja é a capital alemã). A segunda alternativa é dormir uma noite onde você desembarca. Você elimina o stress da conexão e ainda arranja algum prazer para o primeiro dia da viagem, que estaria totalmente perdido no deslocamento. Não faça nenhuma atividade turística convencional (não é o momento de enfrentar filas ou se enfiar em museus): use o fim desse dia só para esticar as pernas, desestressar, comer e beber bem, para seguir viagem no dia seguinte (lá pelas 10h, depois de uma noite bem dormida e um merecido café da manhã).
Sem mistério:
Como pesquisar passagens multidestinos e comprar a passagem certa para sua viagem
Seguir viagem de manhã cedinho
Já escrevi um post sobre isso (aqui). Mas não custa fazer uma decupagem.
No afã de rentabilizarmos melhor nosso tempo em viagem, costumamos escolher o primeiro vôo, o primeiro trem ou o primeiro ônibus do dia. Vai por mim: só faça isso se essa for a única alternativa.
Pegar um vôo às 7h da manhã significa estar no aeroporto às 5h. O que significa sair da cidade às 4h. O que significa ter que marcar um táxi para passar no seu hotel às 4h. O que significa acordar o mais tardar às 3h30. O que significa dormir naquela tensão de “será que eu vou ouvir o despertador? será que eu programei direito? será que o recepcionista vai lembrar de me ligar?”. O que significa tentar dormir o mais cedo possível. O que significa não aproveitar a noite anterior como poderia. O que significa passaar uma noite maldormida e cabular o café da manhã do hotel (pelo qual você provavelmente já terá pago).
Evite ao máximo.
Comece pelo básico:
Dicas essenciais para montar um roteiro redondinho de viagem pela Europa
Sair do aeroporto entre vôos
Também já escrevi um post (aqui). Entre ficar horas mofando no aeroporto para pegar uma conexão, melhor ir para a cidade, não é? Ops: nem sempre.
Decupando o filminho dessa operação, cheguei à conclusão de que, se você tem menos do que 7 horas, o melhor é achar um café e ler um bom livro. O intervalo mais confortável é a partir de 10 horas.
Do intervalo entre os vôos, você precisa abater o tempo na imigração (1h a 2h), o tempo de viagem à cidade (vamos pensar em 1h para ir, 1h para voltar) e a antecedência de reapresentação para passar pelos controles de segurança (1h30). Ou seja: você precisa descontar entre 4h e 5h do seu intervalo total.
Sempre lembrando que o trajeto entre aeroporto e cidade, nas duas direções, é sempre o mais tenso da vida do viajante. E ao sair do aeroporto, você está incluindo mais dois desses trajetos no seu dia.
Outra questão importante é a bagagem de mão: você precisa viajar com uma bolsa que consiga carregar com você para o passeio. Maleta, mesmo de rodinha, estraga qualquer tentativa de turistagem.
Leia mais:
80 comentários
Olá! Que primor de site de ajuda para viajantes inesperientes como eu. Faço com minha família, em julho de 2020, nossa primeira viagem internacional. É uma viagem em comemoração aos 15 anos da nossa filhota, que sonha conhecer Paris por contar da decendência familiar (distante). Nosso orçamento é apertado, somos assalariados e estamos economizando bastante para que tudo ocorra bem. Pensamos em levar apenas dinheiro, ao invés de usar cartão de crédito, pois o meu e do meu esposo possuem limites que chegam a apenas a 4 mil reais. É viável? Gostaríamos que fosse tudo perfeito, dentro das nossas possibilidades. Vamos ficar em albergues. A origem da nossa família é Suiça. Qual roteiro específico vocês nos sugerem? Obrigada pelas postagens fantásticas. Estamos assistindo a tudo, e em família!
Olá, VPoubell! É mais seguro fazer um cartão pré-pago em vez de levar dinheiro vivo. Leve também cartão de crédito, há várias situações em que se fará necessário.
Veja:
https://www.viajenaviagem.com/2018/05/cartao-de-credito-internacional-em-viagem-7-situacoes-em-que-e-melhor-voce-usar/
https://www.viajenaviagem.com/destino/paris/o-que-fazer-paris/
https://www.viajenaviagem.com/2013/09/roteiros-trem-suica-swiss-pass/
Muito legal! Concordo com tudo.
Peguei trem noturno entre Kraków (Polônia) e Praha (República Tcheca) e foi bem cansativo, o pessoal ficava saindo da cabine a noite toda e chegando na cidade, consegui early check-in e fui dormir.
Sobre conexões, já fiz com dois voos (e não com trem), mas comprei o voo doméstico separado do internacional. Para ir à Ilha de Páscoa, cheguei um dia antes em Santiago, passei o dia na cidade, dormi e embarquei no outro dia; os dois voos juntos era muito mais caro; tinham outros voos São Paulo – Santiago e calculei que daria tempo de chegar para o voo do dia seguinte, se tivesse algum cancelamento. Já para ir a Cusco, cheguei pouco depois da meia-noite em Lima, dormi em Barranco, que tem a hospedagem mais barata do que Miraflores, conheci o bairro durante o dia, dormi e só embarquei no outro dia; tinham só dois voos diretos pela Latam, peguei o segundo e calculei que se fosse cancelado, perderia o próximo voo, então fiquei duas noites em Lima e deixei para conhecer melhor a cidade alguns dias antes de pegar o voo de volta para o Brasil.
Fiz conexão de 12 horas em Paris, fui conhecer a Torre Eiffel e passar por alguns pontos da cidade e foi um caos, muito corrido, não faria de novo.